15 de jul. de 2023

Pessoal do fundo da igreja

Por um bom tempo acompanhei a luta do padre de uma comunidade para trazer o pessoal para frente, durante as celebrações, especialmente, na missa. Convidava por bem, fazia apelos sorrindo para que viessem mais para frente e nada. Um dia, na missa da tarde, entrei na igreja e o fundo estava com as luzes apagadas. Fui preparar-me para fazer a leitura e, antes da procissão de entrada, ele me falou: vou escurecer o fundo para ver se os “devotos da porta” vêm para frente.

            Ele sentia-se mal celebrando as missas durante a semana, com uma espécie de vácuo, no meio da assembleia. Na frente ficavam as senhoras do Apostolado da Oração, outro grupo da RCC e mais alguns devotos... logo em seguida, bancos vazios e, lá no fundo, um grupo de pessoas que chegavam cedo para ocupar os últimos bancos. Alguns gostavam tanto de ficar nos últimos bancos que ficavam na parede do fundo, caso não encontrassem lugar no banco derradeiro. Mas, com a luz apagada, o padre tinha os devotos iluminados na frente e os “devotos da porta”, apagados no fundo da igreja.

            Quando acabou a missa, ele ficou impressionado com a teimosia dos banqueiros da última fila. Mesmo às escuras preferiam ficar lá no fundo. Isso já tinha virado causa de honra e eu, como outros, ficávamos na expectativa para ver quem iria ganhar: o padre ou os banqueiros da última fila. Um dia, ele quase levou um altar para o fundo da igreja. Celebrar naquelas condições lhe fazia mal. Foi numa reunião para preparar a celebração dessa Domingo que alguém comentou que o publicano parecia os banqueiros da última fila. Caiu a ficha! Quer dizer, entrou o respeito pelo jeito de rezar de quem ficava no fundo da igreja. Na reunião, fizemos uma prece pelo nosso pessoal do fundo da igreja, o padre voltou a iluminá-los e um dia relembrando o caso, comentou comigo: “um dia um senhor chegou para mim e disse que ficava no fundo da igreja porque tinha vergonha da roupa; vinha do trabalho e antes de voltar para casa, participava da missa. Vinha suado e, por isso, preferia ficar lá no fundo da igreja. Era um alcoólatra em recuperação.” Tinha trocado o bar pela igreja, mas no banco do fundo.

            Brincando, lembro que comentei que reparei que ele abria mais os braços na bênção final. Ele respondeu sério: “é verdade, é para tocar os banqueiros da última fila, eles precisam de um carinho abençoado.”

Serginho Valle
Julho 2023

 

1 de jul. de 2023

Música nas celebrações batismais

 

Todas as celebrações litúrgicas que contam com assembleias contemplam a música como rito litúrgico e como meio participativo na celebração. Isto é muito claro nas celebrações Eucarísticas e nas celebrações sacramentais como Matrimônio, Crisma, Ordenação e nas celebrações do Batismo. Vamos considerar a música nas celebrações batismais.

 
Uma curiosidade 

    Mesmo que a História da Igreja registre que se batiza crianças desde os seus primórdios, o Rito de Batismo das Crianças é o mais recente de todos. Foi elaborado depois da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Antes do ritual atual, usava-se o Ritual de Batismo para Adultos, adaptado para crianças.

Três características marcam o antigo rito do Batismo: era em latim e só o padre o compreendia, como só o padre compreendia, ele fazia tudo sozinho. A terceira característica, os celebrantes assistiam e ficavam calados em quase toda celebração. São características que levaram muitos autores a interpretar (sem menção a qualquer tipo de juízo) que o “padre “fazia” os novos cristãos”. Uma mentalidade que nunca esteve presente na Teologia Litúrgica do Batismo católico.

No contexto proposto pela Reforma da Liturgia (1963), as celebrações ganham uma dimensão participativa e pastoral. Duas dimensões, a participativa e a pastoral, com a finalidade de favorecer a participação e a compreensão do rito.

 

Estrutura da celebração do Batismo das Crianças

Como acontece com todas as celebrações da Liturgia Romana, a celebração do Batismo das Crianças também é estruturada em 4 partes: Ritos iniciais, Liturgia da Palavra, Liturgia Sacramental e os Ritos Finais.

Se a estrutura celebrativa, no modo como era celebrado o Batismo de Crianças antes da Reforma Litúrgica, indicam passividade, a celebração batismal pós concílio é muito dinâmica e alegre. O dinamismo é percebido desde a acolhida dos pais e padrinhos, na porta da igreja, convidando-os a entrar para celebrar o batizado do filho ou da filha. A alegria é própria do nascimento de uma criança dentro da família e para isso contribui, e muito, a música na celebração do Batismo das Crianças.

Por isso, o primeiro critério para escolher as músicas para uma celebração batismal de crianças é a alegria. Escolher músicas alegres, para que a dinâmica e a alegria celebrativa do Batismo possam transparecer ainda mais. Outro critério, ainda na generalidade, é escolher canções que destaquem os ritos e as liturgias da celebração do Batismo de crianças. Por exemplo: a música inicial será de acolhida, de boas-vindas; no momento do batizado, o rito pede uma música que fale da vida nova, etc...

 

Menções de canções

O ritual do Batismo de Crianças (1999) destaca os seguintes momentos para cantar no batizados de crianças:

    acolhida dos pais, padrinhos e das crianças, na porta da igreja (n. 37) 

    durante a assinalação das crianças (n. 44)

    procissão de entrada, da porta da igreja até o ambão (n. 45)

    preparando a Liturgia da Palavra, com o canto de um refrão (n. 47)

    ladainha de todos os santos (n. 52)

    durante a procissão ao batistério, cantar a Ladainha de Todos os Santos (n. 61)

    durante os batizados, se o número de crianças for muito grande (n. 76)

    durante a aspersão da assembleia, depois dos batizados (n. 78)

    aclamação ao receber a Luz de Cristo, no Círio Pascal (n. 83)

    durante a procissão do batistério ao altar, com as velas acesas (n. 89)

    depois da “devoção (consagração) à Maria” (n. 95)

O ritual não se prevê canto final, mas pode-se cantar uma canção.

 

Equipes de celebrações para Batismo de Crianças

            Minha última anotação é sobre a necessidade da equipe de celebração no Batismo de Crianças. No ritual usado antes da reforma litúrgica (1963), o padre conseguia fazer tudo sozinho, porque tudo dependia dele. Hoje, o rito pede participação e para isso acontecer é necessária a presença de uma equipe de celebração para o Batismo de Crianças. Como estou tratando de música na celebração do Batismo, destaco que o ministério da música participa da equipe de celebração do Batismo.

Serginho Valle
Julho 2023

           

15 de abr. de 2023

Música e silêncio

 


Silêncio e música são irmãos. Não é possível, especialmente tratando de Música Litúrgica, a ausência do diálogo entre música e silêncio. O silêncio é necessário para que a música cante no coração e na mente dos celebrantes e, de outro lado, a música interrompe o silêncio para expressar o que está sendo celebrado. São dois irmãos que atuam em forma de diálogo celebrativo. 
    É diante desse quadro, que vamos considerar alguns elementos da Música, na celebração da Eucaristia, pontuando quatro momentos celebrativos: cantar de modo orante, o silêncio antes da Missa, os ritos silenciosos, o silêncio na Oração Eucarística e o equilíbrio dialógico entre música e silêncio.

 
Cantar e tocar instrumentos de modo orante  

    No documento litúrgico “Musicam sacram” (n. 17), duas coisas chamam atenção: a finalidade do silêncio não é reduzir os celebrantes a expectadores, mas com a ajuda, inclusive da música, introduzi-los de modo mais interiorizado no mistério celebrado. Neste sentido, a música tem a função de conduzir ao silêncio e de ajudar os celebrantes a tornar o silêncio frutuoso. Isto é facilitado com canções orantes em suas poesias e no modo de executá-las. É um convite a analisar a poesia das canções e o modo de executar as canções. 
Músicas tocadas e cantadas agressivamente, de forma barulhenta... em vez de ajudar os celebrantes a descansar na oração silenciosa, dispersa-os. Considerando que o barulho agride os ouvidos dos celebrantes e os dispersa, é cada vez mais importante valorizar a arte de usar liturgicamente os instrumentos musicais e de cantar interpretando liturgicamente as canções.

 

Silêncio antes da Missa  
    Nas Instruções Gerais do Missal Romano (IGMR 45) encontramos dois aspectos importantes: existem “silêncios” diferenciados e, a importância do silêncio antes da Missa. O silêncio antes da Missa é importante para favorecer o clima de oração e de tranqüilidade antes de entrar na celebração. Por isso, a recomendação se faz oportuna para que haja silêncio também naqueles locais onde os ministros se preparam para participar da celebração, como por exemplo, na sacristia. 
    Dentro da igreja, o espaço celebrativo deveria acolher os celebrantes com o silêncio ou, quem sabe, uma música suave (instrumental ou gregoriano), tocando no sistema de som da igreja, antes da celebração começar. É antipático ser acolhido com afinações de instrumentos ou músicos testando microfones. Além de antipático favorece a dispersão de quem chega. Por isso, os músicos estejam devidamente preparados com antecedência para evitar ajustes barulhentos de última hora. Quando isto for necessário, o local é a sacristia ou a sala dos ministérios.

 
Ritos silenciosos  
    Quanto às diversas modalidades de silêncio na celebração, é útil recordar que alguns ritos são participados  pelo próprio silêncio. É o caso da preparação ao ato penitencial. O rito prevê um espaço de silêncio e um momento silencioso antes da invocação penitencial. Por isso, entrar com fundo musical é invadir e destruir o rito, impedindo que se realize no modo como é proposto: silenciosamente. 

O silêncio na Liturgia da Palavra, por exemplo, é um silêncio de audição; quer dizer, uma atitude educada de quem se dispõe a silenciar para ouvir Deus falando pela sua Palavra. O músico que afina instrumentos ou fica treinando acordes para o salmo responsorial demonstra-se mal educado, a ponto de não respeitar a voz de Deus falando na assembléia. Pode acontecer que algum instrumento desafine. Nesse caso, o melhor é sair da igreja, discretamente, para afinar os instrumentos na sacristia. 
    Destaque especial merece a notação do silêncio depois da comunhão. É um silêncio importante; silêncio ritual destinado à oração pessoal silenciosa. Não é momento para rezar com fórmulas ou fazer devoções eucarísticas. É silêncio ritual de oração para proporcionar a oração pessoal. Isto significa que os celebrantes sejam educados para silenciar e deixar o Espírito Santo rezar neles. Se um instrumentista entra e começa a tocar um solo instrumental, mesmo que seja ótimo no que faz, provoca ruído porque invade o rito silencioso que é próprio daquele momento. Depois do silêncio e como continuação do mesmo, então sim... então pode-se cantar uma canção de agradecimento, de louvor ou de compromisso com a celebração. 
    Conta muito, neste caso, o jeito de tocar, o jeito de executar os instrumentos. O pessoal do Ministério da Música precisa compreender que devem entrar no silêncio na ponta dos pés, com acordes baixos, tom suave e jeito de cantar suave. Passa-se do silêncio ao cantar sussurrado até o cantar com voz alta. Esta é uma sensibilidade que ainda precisa ser aprendida em muitas comunidades.

 
Silêncio na Oração Eucarística  

    Para aqueles músicos que sempre exigiam algum texto escrito por Roma para silenciar na hora da consagração, eis um documento da Santa Sé é claro neste sentido. Estou falando da “Redemptionis Sacramentum” (n. 53). Ali diz que, durante a Oração Eucarística, se faz silêncio, inclusive silenciando os instrumentos. Tudo se cala diante do Mistério da Salvação presente no altar. Se existe uma invasão e uma demonstração de falta de sensibilidade litúrgica é esta de músicos cantando ou fazendo fundo musical durante a proclamação da Oração Eucarística.
    O mesmo vale para aqueles que cantam canções devocionais no momento da elevação do Corpo e Sangue consagrados ou em substituição à aclamação litúrgica do “Mistério da fé”. 
Por aclamações devocionais entende-se as canções “Eu te adoro hóstia divina”, “Deus está aqui”, “Viva Jesus na hóstia santa” e outras canções semelhantes. São canções de louvor Eucarístico, é claro, mas não apropriadas para serem cantadas depois da elevação do Pão e Vinho consagrados. Aliás, nem se deve cantar.


Equilíbrio dialógico entre música e silêncio  
    Por fim, a importância do equilíbrio entre a canção e o silêncio. Não se pode fazer uma celebração totalmente silenciosa e nem totalmente musicada. Por isso, a necessidade do equilíbrio que permite celebrar cantando e celebrar silenciando. A canção conduzindo ao silêncio e o silêncio preparando o louvor, a súplica, a canção.

Serginho Valle
Outubro 2021

 

25 de mar. de 2023

A Liturgia educa para o belo

“A beleza salvará o mundo". A conhecida frase de Dostoiévski encontra na Liturgia uma fonte educadora muito pouco valorizada, se considerarmos Liturgia como epifania da beleza divina, como diz a Teologia Litúrgica oriental; a Liturgia manifesta a beleza divina. Uma beleza a ser contemplada com os olhos da espiritualidade, de quem se deixa conduzir pelo Espírito de Deus no momento celebrativo.

Se a Liturgia é a fonte da beleza divina, então, com mais razão podemos compreender que a beleza, particularmente a beleza divina salvará o mundo. Seremos salvos pela beleza, porque Deus é a beleza perfeita. Além disso, compreende-se que celebrar a Liturgia é mergulhar para se envolver na beleza divina; beleza que ultrapassa a admiração para se tornar contemplação do Mistério divino presente na simplicidade sacramental dos sinais e dos ritos celebrados.

Será possível perceber a beleza divina nas celebrações?
Se a Teologia da beleza divina é encantadora, a realidade das celebrações nem sempre se manifesta belamente. É inquietante saber e, por isso é justo se perguntar: por que, muitas vezes, nossas celebrações não conseguem ser epifania da beleza divina?

Existem vários motivos. Um deles tem a ver com o conceito de beleza na Teologia; o conceito teológico do belo e, agrupado a esse, o conceito de belo na Liturgia. Encontramos o conceito teológico da beleza nas primeiras páginas da Bíblia: Deus realiza a Liturgia da criação e a admira como bela; como beleza. Tudo que Deus faz é belo, irradia beleza; a criação é bela e manifesta o dedo artístico de Deus. Deus celebra a criação contemplando-a como bela: “e Deus viu que tudo era muito belo” (Gn 2,18), diz o autor no original Bíblico.

O conceito de beleza, na Liturgia, conserva a mesma dinâmica divina de contemplar a obra da salvação na Liturgia e ver que tudo é belo. É a alegria de quem se encanta com a beleza, de quem sabe contemplar a arte celebrativa e nela encontrar a mensagem do belo. É mais que um simples exercício psicológico causado pela emoção do encantamento; é uma participação de quem comunga a beleza divina celebrando a obra salvadora de Deus.

O conceito de belo, sempre no contexto da Liturgia, envolve outro aspecto, além do teológico: a estética da celebração. Celebrar é belo, mas é preciso aprender a celebrar com a beleza da Liturgia. Este é o aspecto mais visível da celebração. Não é simples, reconheçamos, porque a beleza estética da Liturgia é manifestação da beleza teológica da Salvação. Quando não se degusta a beleza da Salvação, a beleza da Liturgia pode ser sequestrada por outros modos de propor a beleza, como aquele em formato show de auditório: agrada os olhos, toca a emoção, mas com o risco de não atingir a vida e nem reagir na vida.

A Liturgia celebrada no Monte Tabor
Um modo de ilustrar a beleza divina presente na celebração litúrgica encontra-se na cena da Transfiguração do Senhor (Mt 17,1-9). A perícope da Transfiguração é uma narrativa litúrgica, realizada com uma sequência de ritualidade: a convocação de Jesus, o rito de entrada subindo o Tabor, o encontro com Jesus transfigurado, a comunhão com a beleza divina e o envio para descer o Tabor e voltar para a planície. Volta-se para a planície diferente depois de comungar a beleza divina na Liturgia. A celebração não se resume em levar a vida para o Tabor — para a celebração — mas em descer do Tabor (celebração) para transfigurar a planície.

Estamos diante do ideal sempre procurado em termos de celebração litúrgica: envolver os celebrantes na contemplação divina, encantá-los a ponto de reconhecer que é bom estar ali, como disse Pedro (Mt 17,4) e, iluminados com a luz da beleza transfiguradora de Jesus, enviá-los ao mundo para transfigurar a realidade da planície, no chão onde convivemos com a realidade da vida social. Este é o grande desafio: uma Liturgia bela — transfiguradora —, uma Liturgia que eduque para a beleza divina, capaz de envolver os celebrantes na beleza divina, na beleza profunda da espiritualidade litúrgica.

A Liturgia, experiência de Tabor, monte do encontro com o Senhor; local para uma celebração reservada de encontro com a beleza divina onde é possível contemplar a glória divina em Jesus Cristo. A beleza da contemplação de quem celebra para admirar a luz divina. Sim, é uma beleza mística, de uma Liturgia educadora da contemplação e da mística. Um tempo marcado pela beleza, a ponto de repetir a mesma experiência de Pedro: “Mestre, é bom estarmos aqui, vamos fazer três tendas" (Mt 17,4). Uma celebração que termina com a vontade de voltar porque é bom e bonito estar aqui. A beleza sempre encanta e sempre atrai; sempre expressa a vontade de “ficar um pouco mais!” O feio repele e sempre é evitado.

A Liturgia celebrada no santuário do presépio
Outra fonte da Teologia da beleza, na Liturgia, pode ser encontrada na celebração da Epifania (Mt 2,1-12). Uma celebração marcada pela beleza da luz que conduz ao encantamento e à adoração. A Liturgia educa para a beleza e, diante da beleza divina, a adoração silenciosa. A Liturgia da Epifania é uma celebração atraente, iluminada pela estrela guia (Mt 2,2) que conduz os celebrantes ao encontro da simplicidade e da pobreza divina no santuário de um presépio.

A Liturgia, do ponto de vista de ser fonte da vida cristã (SC 10), é a estrela guia que brilha e atrai os celebrantes ao encontro da simplicidade e da pobreza divina. A glória divina, no contexto da Epifania, se manifesta na simplicidade, na pobreza, no silêncio. Celebrações simples e serenadas (Cf. SC 34), que brilham para provocar nos celebrantes a mesma atitude dos Reis Magos: “vimos sua estrela e viemos adorá-lo” (Mt 2,2). A beleza da Liturgia, celebrada em todos os Sacramentos, tem sua dimensão estética realizada para atrair e conduzir ao encontro com Jesus Cristo e, diante dele, prostrar-se para adorar e abrir o cofre de nossos corações para oferecer o tesouro de nossa vida (Mt 2,11).

Outra atitude celebrativa, ainda no contexto da Liturgia celebrada no santuário do presépio, é aquela de Maria, a Mãe de Jesus. Ela celebra o encontro com Jesus no silêncio, meditando tudo em seu coração (Lc 2,19). Nada de agitação, de palavras de comando para levantar braços e produzir aplausos. No santuário do presépio tudo é silêncio; o “bebê está dormindo!” A beleza na Liturgia não é encontrada no agito de aeróbicas de braços, pernas e gestos, mas no recolhimento. A dificuldade de celebrar silenciando o coração e o corpo não está na Liturgia em si, alegando que seja “parada, estática”, mas na dificuldade de silenciar a vida, cada vez mais agitada em nossos tempos. A escola da Liturgia educa ao silêncio, educa à contemplação, dois caminhos para encontrar a beleza da Liturgia que se traduz em adoração.  

A beleza da Liturgia manifestada pela arte 
Do ponto de vista estético, a Liturgia sempre primou pela beleza. A história da Liturgia é um monumento de arte em suas variadas manifestações artísticas: arquitetura, escultura, música, literatura, retórica, pintura... todas as artes a serviço do culto a Deus. Os celebrantes são educados para adorar, rezar e silenciar diante da grandeza divina pela linguagem da arte. Com um detalhe que sempre precisa ser considerado: a linguagem da arte não serve para explicar, mas para manifestar (epifania) e compreender sem se preocupar com a compreensão. A beleza não se explica, é sentida com o sentimento e com a emoção de se estar bem; em paz.

Não é simples — e nem tem sido fácil — compreender que a formação litúrgica, educando para o belo e para a beleza, não se faz com um dicionário de simbologia litúrgica debaixo do braço. O caminho não está na explicação de quem sabe para o povo que não conhece. O caminho inspira-se na beleza do Tabor e na epifania do santuário do presépio: silenciar, contemplar, adorar. O caminho para a beleza da Liturgia encontra-se na escola da oração, seguindo o exemplo de Jesus, nosso Mestre da oração (Lc 6,12).

Por fim, a beleza manifestada pela arte da Liturgia exige pessoas preparadas para comunicar -se liturgicamente. Preparadas, primariamente, do ponto de vista espiritual, sem perder a capacidade de se comunicar com a linguagem própria da Liturgia. Simplesmente, não é possível educar pela Liturgia se a beleza da Liturgia não estiver dentro do comunicador. Ele pode propor (ou até mesmo proporcionar) tentativas de animações emocionais para tocar o espiritual, por exemplo, mas serão limitadas ao tempo emocional: breves e passageiras.

Quem atua na PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial – jamais pode perder de vista o aprimoramento da comunicação litúrgica pela linguagem da Liturgia, que sempre se manifesta pelo belo, pela beleza. Mas, para isso acontecer será preciso cultivar a beleza de conviver e ter experiência com o Senhor, como aconteceu no Tabor e como aconteceu no santuário do presépio.

Serginho Valle
Março de 2023

 

 

11 de mar. de 2023

Francisco, o mistagogo na Desiderio desideravi


A Carta Apostólica de Papa Francisco, Desiderio Desideravi (2022), apresenta Papa Francisco na função de mistagogo da Liturgia. Mistagogo no sentido próprio termo: aquele que introduz no Mistério divino celebrado na Liturgia.

    Papa Francisco propõe a Carta Apostólica Desiderio Desideravi em estilo meditativo. É o estilo próprio do mistagogo. Ele não se serve de ensinamentos, como se fosse um professor, mas medita, propõe uma “lectio”, uma lição que não tem a finalidade de ensinar conteúdo, mas colocar os destinatários da mensagem em contato com a vida cristã através da Liturgia. Esta é dimensão própria da mistagogia litúrgica: não ensinar, mas meditar o Mistério para tomar contato com a vida. Entrar no Mistério celebrado na Liturgia com a meditação, a exemplo de Maria que, diante do Mistério do Natal, no santuário do presépio, silencia para se colocar em meditação (Lc 2,19). Diante do Mistério divino, o silenciamento.

O que é Mistério (com M maiúsculo 
    Mistério, na Teologia litúrgica, é um evento, um acontecimento salvífico. A Teologia litúrgica, para falar que um acontecimento é salvador usa o termo Mistério. Assim, o Natal é um Mistério, quer dizer, é um evento histórico no qual Deus age para salvar povo. A Páscoa é o Mistério da Salvação; o evento histórico no qual Deus salva, Deus age salvando pela Ressurreição de Jesus. Na Missa, o padre proclama, no momento da consagração do pão e do vinho, “Eis o Mistério da fé”. Está dizendo que a Eucaristia é um momento, um acontecimento salvífico; momento no qual Deus age salvando. 
    O termo Mistério vem de “myterion”, em grego. Em latim, esse termo foi traduzido como sacramento. Toda celebração litúrgica é um Mistério: é um momento e um acontecimento salvífico. Por isso, a necessidade e a importância de celebrar bem e com todo o respeito, com o respeito próprio de adorante, o modo próprio e justo de se aproximar do Mistério divino. Em tempos idos, esse momento era cuidado e guardado como “divino arcano”.

 
O Mistério na Desiderio Desideravi 
    Do ponto de vista mistagógico, Francisco faz sua catequese aprofundando o sentido litúrgico do Mistério. A Liturgia é um “locus salutis”, um local da Salvação, local onde participamos, onde tomamos parte, onde ingressamos na Salvação divina.  Momento no qual Deus salva. Esta Salvação acontece por obra do Espírito Santo. Participar de uma liturgia é tornar-se parte da Salvação; um modo de entrar na Salvação. Quando eu celebro o Sacramento da Reconciliação, por exemplo, eu participo, tomo parte da Salvação divina sendo perdoado dos meus pecados. 
    Isto, na Eucaristia é ainda mais bonito, manifestado pelo “Desiderio Desideravi” de Jesus: seu desejo ardente de celebrar a Ceia derradeira como Mistério, como local da Salvação. Em latim: “Desiderio desideravi manducat hanc coena vobiscum (Lc 22,15)”. Desejei ardentemente comer esta ceia convosco. Onde Jesus está presente, celebrando a Liturgia, ali acontece a celebração do Mistério, a celebração da Salvação. Celebração não no sentido literal de tornar algo célebre, algo que merece ser comemorado ou recordado, mas celebração como acontecimento que salva. Comparando em termos jurídicos, usa-se a expressão de “celebrar um contrato”. A Liturgia celebra o contrato da Salvação, que nós traduzimos como “testamento”; um Novo Testamento, celebrado, assinado, sancionado com o sangue do Senhor. 
    Ao sermos iniciados na Liturgia como celebração do Mysterium Fidei — o “Mistério da fé” — proclamado depois da consagração do pão e do vinho em Corpo e Sangue de Jesus, somos levados a compreender que a Liturgia é, em primeiro lugar, um espaço divino porque nela somos envolvidos e participamos da Salvação que Deus oferece. É neste sentido que a Liturgia é terra santa: “desamarrem as sandálias e descansem; este chão é terra santa, irmãos meus”. Qual chão? o chão da Liturgia, terra santa para descansar participando do Mistério da Salvação. Compreendendo bem esta dimensão, começamos a ser iniciados na Liturgia pelo mistagogo Francisco para compreender que a Liturgia é mais divina que humana, por isso é sagrada e bela. É repleta de beleza, no dizer de Papa Francisco, em nada mais nada menos que 11 citações para enfatizar a beleza da Liturgia.  Nesta minha reflexão, inspiro-me no número 10 da Desiderio Desideravi e, mais especificamente, a partir do número 21. 
    Participar do Mistério da Salvação é o exercício de ingressar na beleza divina, que não encanta somente os sentidos da visão e da audição, mas toca o profundo do coração, lá onde se encontra o centro da vida. É o silenciamento que produz a paz interior. Não é, portanto, a beleza pela beleza, mas a beleza que a torna terra santa, lugar de silenciamento, de meditação, que inspira a beleza estética da ars celebrandi, da arte de celebrar. Celebrar com arte é preciso porque o Mistério é grande.  

 
A Liturgia, epifania da unidade da Igreja 
    Um segundo aspecto da catequese mistagógica do mistagogo Francisco apresenta a Liturgia como um dom de Jesus. Não é argumento retórico; é teológico. Na Liturgia nós participamos como convidados para receber um dom divino oferecido por Jesus. É um olhar de extrema importância porque inverte o nosso ponto de vista: não é a Igreja que celebra a Liturgia para agradar a Deus, mas é o próprio Deus, na pessoa de Jesus, que nos convida — com desejo ardente — a participar (tomar parte, ser parte) da sua vida. Por isso, a Liturgia é um dom divino. Na Desiderio desideravi, a Liturgia como dom encontra-se nos números 3-9. 
    É desse modo que a Liturgia é lex orandi lex credendi … nós celebramos o que cremos. Para sermos mais pontuais, podemos dizer que celebramos “como cremos”. Este “como” (o modo como se faz a celebração) tem a ver com a fé da Igreja e não de grupos que estão em desacordo ao modo como a Igreja celebra a Liturgia, da Missa e dos Sacramentos. A Igreja, neste nosso tempo, crê, manifesta sua fé, celebrando o dom da Liturgia com uma única Liturgia. A unicidade no modo de celebrar a Liturgia, dom divino, manifesta, é epifania, da unidade da única Igreja reunida em celebração da mesma fé. 
    Papa Francisco faz questão de ressaltar que este argumento encontra fundamento e validade naquilo que foi decido, por iluminação do Espírito Santo, no Concílio Vaticano II. A Igreja sempre é conduzida pelo Espírito Santo e isso vale também naquilo que é determinado pela Igreja quanto ao seu “modus celebrandi”. O modo de celebrar, como celebramos hoje, é inspiração, no sentido de ser orientação, do Espírito Santo da Igreja reunida em Concílio. 
    Para além do aspecto jurídico, nós aceitamos a Liturgia como dom divino, dom do Espírito Santo que orienta sua Igreja quando ao modo como a celebramos, cada povo com sua língua, com a presidência voltada para a assembleia dos celebrantes... Isto vale para a Eucaristia, de modo mais evidente, e vale igualmente para todos os Sacramentos e Sacramentais. Dom que nasce do amor e da misericórdia de Deus que, na Liturgia e pela Liturgia, possibilita-nos participar da Salvação divina. Isto em todos os sacramentos. É assim que o mistagogo Francisco fala na Desiderio Desideravi n. 25. 
    Sobre este tema, do ponto de vista disciplinar, Papa Francisco diz que essa compreensão é decisiva para entender que a crise da Liturgia pode ser descrita como sendo crise da dificuldade de acolher o modo de celebrar o Mysterium Salutis (a Salvação divina). Ora, isso tem a ver com desobediência, de não estar cum Petrus e sub Petrus (Desiderio desideravi, n. 61). A dificuldade gerada pela desobediência ao que propõe a Igreja em Concílio ressalta a importância e a necessidade de uma profunda formação litúrgica que, como diz Francisco, no número 34, inicia-se por se deixar formar pela Liturgia para participar da Salvação divina celebrando a mesma fé e não colocando impedimentos de ordem ideológica ou de inobediência.

 
A formação litúrgica e o deixar-se formar pela Liturgia 
    Deixar que a Liturgia nos forme (DD 61) é colocar-se à disposição da pedagogia divina e permitir que ela conduza a vida pessoal. Resistir a isso é complicado porque, do ponto de vista teológico, nega-se fidelidade à Igreja. 
    O se deixar formar pela Liturgia coloca o celebrante na mesma condição da Mãe de Jesus, no presépio, como lembramos no início deste artigo: silenciamento diante do Mistério com atitude meditativa de quem conserva tudo no coração (Lc 2,19). O gesto da “Virgem do Silêncio”, servindo-me da expressão de Inácio Larrañaga, é de total obediência e fidelidade ao projeto divino diante do “novo de Deus”.
    A
 condição para se deixar formar pela Liturgia encontra-se na iniciação; é preciso ser iniciado na Liturgia. Para tanto, a ênfase no processo mistagógico, como é possível ler nos números 37 e 41 da Desiderio desideravi. Isto serviu de inspiração para eu dedicar um módulo dedicado à formação e à espiritualidade litúrgica no meu curso de PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial. Em relação à formação litúrgica, esta não acontece pela informação e explicações, mas pela iniciação, condição para ser formado pela Liturgia. Isto acontece pela dinâmica pedagógica da mistagogia. 
    Quando a mistagogia não está presente, como aconteceu em vários momentos da história, a Liturgia começa a perder uma de suas dimensões fundamentais: ser fonte para a formação e o crescimento da vida cristã (SC 1 e SC 10). No passado, quando a mistagogia começou ser negligenciada, as celebrações começaram a ser invadidas por atrações artísticas, como é o caso de corais e concertos durante as Missas, invadidas por promessas de milagres com Missas votivas para todo tipo de necessidade, invadidas por disputas teológicas com sermões que fizeram história... Ou seja, mudança de foco: em vez de ser formado pela Liturgia, com a pedagogia mistagógica, o predomínio da estética, do milagre, de debates... Hoje, o mesmo sequestro do arcano, do respeito pelo religioso em celebrações litúrgicas, da mistagogia, continua acontecendo. 


    Sequestrado em Missas que se servem da linguagem de entretenimentos, em casamentos com linguagem teatralizada de ritos inspirados em novelas e não no Sacramento, em confissões transformadas em terapia. É a troca da essência litúrgica, que é encontro com Jesus Cristo, oferecendo a Salvação, por atrações do momento. Celebra-se, nesses casos, para agradar, e se esquece que a Liturgia é atitude, na qualidade de arcano, não se conforma com a linguagem do mundo; serve-se da comunicação humana, de linguagens humanas, mas não da linguagem do mundo para entreter. Formar-se pela Liturgia é assumir compromisso com o projeto divino. E isso deverá ser celebrado de modo agradável e com a simplicidade própria da Liturgia (cf. SC 28; 34).

 
Celebração e compromisso com a vida cristã 
    Assim como a Liturgia celebra e atualiza o Mistério, os celebrantes que participam da Liturgia se comprometem com o que celebram assumindo atitudes da Salvação, do Reino de Deus e do Evangelho e são iniciados no projeto divino pela pedagogia mistagógica. Iniciados na linguagem litúrgica do Mistério. Eu trato deste aspecto no meu curso de PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial considerando que a PLP existe para que, de modo organizado e planejado, possa alcançar o melhor em todas as dimensões da Liturgia, principalmente favorecer nos celebrantes a possibilidade de se deixarem formar pela Liturgia no processo mistagógico. 
    O mistagogo Francisco, desse modo, introduz os celebrantes no Mistério da Liturgia pelo aprofundamento em vista de acolher a Liturgia como momento no qual participamos da Salvação. Isto pode ser melhor compreendido no número 61, onde o Papa deixa claro que a Liturgia “sempre foi a fonte primária da espiritualidade cristã” (DD 61). O modo de ser a “fonte primária da espiritualidade cristã” é aquele mistagógico, proposto pela pedagogia mistagógica desde os primeiros séculos da Igreja. 
    O processo mistagógico não se concentra no conhecimento do que é cada momento ou cada símbolo ou cada rito que compõem uma celebração Litúrgica, mas em iniciar e introduzir o celebrante no Mistério celebrado para que possa ter um real envolvimento existencial, envolvimento com a própria vida, com toda a existência em vista da “conformação a Cristo” (DD 41). Sobre isso, neste mesmo DD 41, Papa Francisco deixa claro que a Liturgia tem uma dimensão pedagógica que, embora não seja a de principal importância, não pode ser prescindida. E isso vale especialmente e necessariamente para os nossos tempos. 
    Esta é uma proposta que procuro desenvolver e aprofundar, nos limites do curso de PLP, com os cursistas. A Pastoral Litúrgica é uma dimensão da Liturgia e, no contexto da PLP, a formação da vida cristã também se configura como uma dimensão. Trata-se, bem entendido, de uma dimensão que merece ser considerada com cuidado e atenção em nossos tempos. Como os mistagogos dos primeiros séculos da Igreja, que na Liturgia e através da Liturgia, ensinavam a arte de viver a fé cristã no caminho do discipulado, assim Francisco quer que a Liturgia seja escola da vida cristã, como dizia São Paulo VI. Escola da vida cristã que sempre se realiza — alcança um de seus objetivos — no discipulado e na configuração a Cristo. Como dizia, este é um tema central meu curso de PLP, que poderá ser acessado no site do SAL - Serviço de Animação Litúrgica no endereço www.liturgia.pro.br ou entrando em contato conosco pelo e-mail: liturgia@liturgia.pro.br 
    Talvez, você esteja se perguntando: como é algo que contém um certo grau de profundidade, como os celebrantes podem compreender isso? Aqui, podemos um motivo derivante da Carta Apostólica de Papa Francisco Desiderio Desideravi: a importância da formação litúrgica na vida dos celebrantes. E para que a formação seja efetiva, é importante que a PLP - Pastoral Litúrgica Paroquial - tenha um programa formativo, não apenas intelectual, mas experiencial. Na prática, não se trata de uma mudança de modo, mas de um modo novo e diferente de participar e comungar a vida divina na Liturgia. E quando isto é considerado, começa-se a compreender a Liturgia como fonte e cume de todas as atividades da Igreja (SC 10).

Serginho Valle 
Março de 2023

19 de fev. de 2022

Educar para celebrar de modo orante

A maior das causas na dificuldade de celebrações litúrgicas autênticas e frutuosas está na não educação para celebrar. Não uma má-educação, no sentido de não se respeitar protocolo ou etiquetas celebrativas, mas em ignorar o que é a Liturgia e o que é celebração litúrgica. Isto é um verdadeiro desafio para a Pastoral Litúrgica Paroquial (PLP): educar os celebrantes na compreensão do que é uma celebração litúrgica. Nessa reflexão, vou focar somente num ponto, que considero básico em vista da educação para celebrar de modo participativo e consciente. Chamo atenção para a educação orante.  A celebração litúrgica, entre outras dinâmicas comunicativas, é uma celebração orante.

 Não é novidade que carecemos de escolas de oração que ensine e eduque os cristãos a rezar como Jesus rezava. A maior parte dos cristãos têm dificuldade para rezar porque não foram ensinados a rezar como Jesus. Uma grande parte de cristãos sequer reza. Outra parte são recitadores de fórmulas e, nas orações comunitárias, como são as celebrações litúrgicas, muitos confundem emoção com oração. Este é um fato que dificulta a participação consciente dos católicos nas celebrações litúrgicas, especialmente na Missa. O que faz um celebrante durante a Missa se não participa de um princípio básico, que é a oração celebrativa?

 Na minha pouca experiência, percebo que a catequese formal feita com crianças, adolescentes e jovens dedica pouco espaço ao aprendizado da oração ou, praticamente, não dedica espaço para o aprendizado da oração. Não se dedica tempo e espaço a educar os catequizandos à oração. Eu desconheço um investimento de pesquisa pedagógica ou psicológica de como introduzir catequizandos das mais diferentes idades na prática da oração.

 Fora da catequese, a situação não é diferente e, talvez, até mesmo piorada. Conheço comunidades que propõe educação e experiências para aprender a rezar através da Pastoral da Espiritualidade. A maior parte das paróquias, infelizmente, sequer ouviu falar que existe uma Pastoral da Espiritualidade. Não posso deixar de mencionar a louvável atividade da Oficina de Oração, cuja experiência tem feito um grande bem a milhares de pessoas em tantas comunidades paroquiais.

 Ouve -se muito, nas celebrações litúrgicas, em pregações, em programas de rádio de TV, que é importante rezar, que precisamos rezar, que a oração é a arma do cristão e tantos outros slogans motivacionais em prol da oração. Mas como rezar? Ou ainda, para ficarmos no básico: o que é rezar para um cristão? Como reza um cristão? Perguntas que não são propostas e nem respondidas nas pregações sobre a oração.

 Alguns pregadores dizem que toda atividade que fazemos é uma oração, por isso basta oferecer a Deus o dia que iremos viver que tudo isso se transformará em oração. Não vou entrar em discussão, mas se fosse assim, Jesus, nosso Mestre na oração, não passaria horas e noites em oração. Sim, no ensinamento de Jesus, a oração é um tempo diferente da atividade cotidiana; um tempo reservado e dedicado unicamente para ficar na companhia de Deus. Vejo isso como uma das principais causas que dificultam a participação consciente e ativa nas celebrações litúrgicas. A dificuldade de propor a celebração litúrgica como um tempo dedicado para ficar na companhia de Deus juntamente com a comunidade.

 

Rezar celebrando e celebrar rezando

A celebração litúrgica é uma forma de oração que reúne diferentes modalidades orantes. Na Missa, por exemplo, existe a oração de súplica, a oração silenciosa, a oração de escuta da Palavra, a oração falada, a oração cantada e a oração visual, aquela dedicada à contemplação.  Quando não se é iniciado na oração cristã, quando se aprendeu a rezar com Jesus e a rezar como Jesus rezava, é difícil rezar celebrando, como também é difícil tornar a celebração um momento orante. Diga-me como celebras que eu te direi o tempo que dedicas à oração. A celebração litúrgica, por ser um momento no qual entramos no espaço divino, é a principal manifestação da vida de oração de quem celebra e de como se celebra. É um tempo, no qual somos educados por Deus enquanto rezamos.

 A celebração da Liturgia das Horas é um exemplo típico de oração celebrada. Por manter a característica orante da Bíblia, com o canto dos salmos e hinos, além de súplicas e responsórios, é totalmente envolvida no silêncio orante, como é próprio da oração de Jesus. Aqui no Brasil, anos atrás, iniciou-se a experiência da Liturgia das Horas em forma de “Ofício das Comunidades”. As comunidades que adotaram o Ofício das Comunidades ou a celebração da Liturgia das Horas — não dentro da Missa, mas como celebração própria — entram num caminho de educação celebrativa orante para celebrar rezando.

 Outro exemplo de Liturgia orante acontece na celebração da Unção dos Enfermos. O ambiente e a condição contextual de celebrar com pessoas em situação de vulnerabilidade, naturalmente, conduz a realizar uma celebração mais calma, mais silenciosa e profundamente orante. Já ouvi de muitos agentes da PLP que trabalham com enfermos o quanto são santificados rezando e celebrando a Palavra e a distribuição da Eucaristia levada aos enfermos e participando da celebração da Unção dos Enfermos. A celebração é um tempo de oração e, quando isso é desconsiderado, realizam-se ritos e deixa-se de celebrar.

 A celebração do Sacramento da Penitência é outro exemplo de celebração orante. É verdade que nem sempre isso acontece e, em grande parte, nem mesmo celebração litúrgica existe; faz-se um rito abreviado e reduzido ao acolhimento, acusação dos pecados, proposta de penitência e absolvição, tudo em forma de bate-papo. Descuida-se assim de celebrar a busca do perdão divino e do perdão fraterno oferecido pela Igreja preparando-se pela meditação, pelo exame de consciência (que é contato da realidade de vida com a proposta do Evangelho) e pela oração.  A praenotanda do Ritual da Penitência orienta que o padre se prepare pela oração para que a escuta do penitente seja um gesto de acolhimento misericordioso realizado no silêncio compreensivo e não pelo julgamento. A cena de Jesus com a pecadora é ícone de uma celebração da Penitência bem-feita, na qual Jesus silencia, escreve no chão, reza e envia com uma nova proposta de vida (Jo 8,1-11). Tudo envolvido no mais profundo respeito, como se caracteriza a celebração litúrgica da Penitência.

 Conclusão

Grande parte dos católicos não é educado para celebrar de modo orante, em situação de contato com a Palavra. Grande parte de nós nos limitamos a realizar ritos e isso não apenas dificulta, mas impede fazer experiência celebrativa orante, favorecedora de encontro com Deus e fonte do crescimento na vida espiritual. Disso, a importância de uma PLP que se proponha a educar para a Liturgia, não se limitando a ensinar significados e fornecendo explicações de ritos, mas aprender a celebrar celebrando, aprender a celebrar rezando.

 Cada vez mais fica evidente que a PLP não pode se contentar, ou se limitar, a preparar celebrações e estar presente nas celebrações. A PLP precisa, urgentemente em algumas paróquias, a entender que seu trabalho na Liturgia vai muito além que fazer listas e preparar celebrações. Isto já se faz; agora é preciso assumir um trabalho capaz de tornar a Liturgia fonte e cume de todas as atividades da Igreja (SC 10).

Serginho Valle 
Fevereiro de 2022.

 

 

 

 

 

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