A Carta Apostólica de
Papa Francisco, Desiderio Desideravi (2022), apresenta Papa Francisco na função
de mistagogo da Liturgia. Mistagogo no sentido próprio termo: aquele que
introduz no Mistério divino celebrado na Liturgia. Papa
Francisco propõe a Carta Apostólica Desiderio Desideravi em estilo meditativo. É
o estilo próprio do mistagogo. Ele não se serve de ensinamentos, como se fosse
um professor, mas medita, propõe uma “lectio”, uma lição que não tem a
finalidade de ensinar conteúdo, mas colocar os destinatários da mensagem em
contato com a vida cristã através da Liturgia. Esta é dimensão própria da
mistagogia litúrgica: não ensinar, mas meditar o Mistério para tomar contato
com a vida. Entrar no Mistério celebrado na Liturgia com a meditação, a exemplo
de Maria que, diante do Mistério do Natal, no santuário do presépio, silencia
para se colocar em meditação (Lc 2,19). Diante do Mistério divino, o
silenciamento.
O que é Mistério (com M
maiúsculo
Mistério,
na Teologia litúrgica, é um evento, um acontecimento salvífico. A Teologia
litúrgica, para falar que um acontecimento é salvador usa o termo Mistério.
Assim, o Natal é um Mistério, quer dizer, é um evento histórico no qual Deus age
para salvar povo. A Páscoa é o Mistério da Salvação; o evento histórico no qual
Deus salva, Deus age salvando pela Ressurreição de Jesus. Na Missa, o padre proclama,
no momento da consagração do pão e do vinho, “Eis o Mistério da fé”. Está
dizendo que a Eucaristia é um momento, um acontecimento salvífico; momento no
qual Deus age salvando.
O
termo Mistério vem de “myterion”, em grego. Em latim, esse termo foi traduzido
como sacramento. Toda celebração litúrgica é um Mistério: é um momento e um
acontecimento salvífico. Por isso, a necessidade e a importância de celebrar
bem e com todo o respeito, com o respeito próprio de adorante, o modo próprio e
justo de se aproximar do Mistério divino. Em tempos idos, esse momento era
cuidado e guardado como “divino arcano”.
O Mistério na Desiderio
Desideravi
Do
ponto de vista mistagógico, Francisco faz sua catequese aprofundando o sentido litúrgico
do Mistério. A Liturgia é um “locus salutis”, um local da Salvação, local onde
participamos, onde tomamos parte, onde ingressamos na Salvação divina. Momento no qual Deus salva. Esta Salvação
acontece por obra do Espírito Santo. Participar de uma liturgia é tornar-se
parte da Salvação; um modo de entrar na Salvação. Quando eu celebro o
Sacramento da Reconciliação, por exemplo, eu participo, tomo parte da Salvação
divina sendo perdoado dos meus pecados.
Isto,
na Eucaristia é ainda mais bonito, manifestado pelo “Desiderio Desideravi” de
Jesus: seu desejo ardente de celebrar a Ceia derradeira como Mistério, como
local da Salvação. Em latim: “Desiderio desideravi manducat hanc coena
vobiscum (Lc 22,15)”.
Desejei ardentemente comer esta ceia convosco. Onde Jesus está presente,
celebrando a Liturgia, ali acontece a celebração do Mistério, a celebração da
Salvação. Celebração não no sentido literal de tornar algo célebre, algo que
merece ser comemorado ou recordado, mas celebração como acontecimento que
salva. Comparando em termos jurídicos, usa-se a expressão de “celebrar um
contrato”. A Liturgia celebra o contrato da Salvação, que nós traduzimos como
“testamento”; um Novo Testamento, celebrado, assinado, sancionado com o sangue
do Senhor.
Ao
sermos iniciados na Liturgia como celebração do Mysterium Fidei — o “Mistério
da fé” — proclamado depois da consagração do pão e do vinho em Corpo e Sangue
de Jesus, somos levados a compreender que a Liturgia é, em primeiro lugar, um
espaço divino porque nela somos envolvidos e participamos da Salvação que Deus
oferece. É neste sentido que a Liturgia é terra santa: “desamarrem as
sandálias e descansem; este chão é terra santa, irmãos meus”. Qual chão? o
chão da Liturgia, terra santa para descansar participando do Mistério da
Salvação. Compreendendo bem esta dimensão, começamos a ser iniciados na
Liturgia pelo mistagogo Francisco para compreender que a Liturgia é mais divina
que humana, por isso é sagrada e bela. É repleta de beleza, no dizer de Papa
Francisco, em nada mais nada menos que 11 citações para enfatizar a beleza da
Liturgia. Nesta minha reflexão,
inspiro-me no número 10 da Desiderio Desideravi e, mais especificamente, a
partir do número 21.
Participar
do Mistério da Salvação é o exercício de ingressar na beleza divina, que não
encanta somente os sentidos da visão e da audição, mas toca o profundo do
coração, lá onde se encontra o centro da vida. É o silenciamento que produz a
paz interior. Não é, portanto, a beleza pela beleza, mas a beleza que a torna
terra santa, lugar de silenciamento, de meditação, que inspira a beleza
estética da ars celebrandi, da arte de celebrar. Celebrar com arte é preciso
porque o Mistério é grande.
A Liturgia, epifania da
unidade da Igreja
Um
segundo aspecto da catequese mistagógica do mistagogo Francisco apresenta a
Liturgia como um dom de Jesus. Não é argumento retórico; é teológico. Na
Liturgia nós participamos como convidados para receber um dom divino oferecido
por Jesus. É um olhar de extrema importância porque inverte o nosso ponto de
vista: não é a Igreja que celebra a Liturgia para agradar a Deus, mas é o
próprio Deus, na pessoa de Jesus, que nos convida — com desejo ardente — a
participar (tomar parte, ser parte) da sua vida. Por isso, a Liturgia é um dom
divino. Na Desiderio desideravi, a Liturgia como dom encontra-se nos números
3-9.
É
desse modo que a Liturgia é lex orandi lex credendi … nós celebramos o que
cremos. Para sermos mais pontuais, podemos dizer que celebramos “como cremos”.
Este “como” (o modo como se faz a celebração) tem a ver com a fé da Igreja e
não de grupos que estão em desacordo ao modo como a Igreja celebra a Liturgia,
da Missa e dos Sacramentos. A Igreja, neste nosso tempo, crê, manifesta sua fé,
celebrando o dom da Liturgia com uma única Liturgia. A unicidade no modo de
celebrar a Liturgia, dom divino, manifesta, é epifania, da unidade da única
Igreja reunida em celebração da mesma fé.
Papa
Francisco faz questão de ressaltar que este argumento encontra fundamento e
validade naquilo que foi decido, por iluminação do Espírito Santo, no Concílio
Vaticano II. A Igreja sempre é conduzida pelo Espírito Santo e isso vale também
naquilo que é determinado pela Igreja quanto ao seu “modus celebrandi”. O modo
de celebrar, como celebramos hoje, é inspiração, no sentido de ser orientação,
do Espírito Santo da Igreja reunida em Concílio.
Para
além do aspecto jurídico, nós aceitamos a Liturgia como dom divino, dom do
Espírito Santo que orienta sua Igreja quando ao modo como a celebramos, cada
povo com sua língua, com a presidência voltada para a assembleia dos
celebrantes... Isto vale para a Eucaristia, de modo mais evidente, e vale
igualmente para todos os Sacramentos e Sacramentais. Dom que nasce do amor e da
misericórdia de Deus que, na Liturgia e pela Liturgia, possibilita-nos
participar da Salvação divina. Isto em todos os sacramentos. É assim que o
mistagogo Francisco fala na Desiderio Desideravi n. 25.
Sobre
este tema, do ponto de vista disciplinar, Papa Francisco diz que essa compreensão
é decisiva para entender que a crise da Liturgia pode ser descrita como sendo
crise da dificuldade de acolher o modo de celebrar o Mysterium Salutis (a
Salvação divina). Ora, isso tem a ver com desobediência, de não estar cum
Petrus e sub Petrus (Desiderio desideravi, n. 61). A dificuldade gerada pela
desobediência ao que propõe a Igreja em Concílio ressalta a importância e a
necessidade de uma profunda formação litúrgica que, como diz Francisco, no
número 34, inicia-se por se deixar formar pela Liturgia para participar da
Salvação divina celebrando a mesma fé e não colocando impedimentos de ordem
ideológica ou de inobediência.
A formação litúrgica e o
deixar-se formar pela Liturgia
Deixar que a Liturgia nos forme (DD 61) é colocar-se à disposição
da pedagogia divina e permitir que ela conduza a vida pessoal. Resistir a isso
é complicado porque, do ponto de vista teológico, nega-se fidelidade à Igreja.
O se deixar formar pela Liturgia coloca o celebrante na
mesma condição da Mãe de Jesus, no presépio, como lembramos no início deste
artigo: silenciamento diante do Mistério com atitude meditativa de quem
conserva tudo no coração (Lc 2,19). O gesto da “Virgem do Silêncio”,
servindo-me da expressão de Inácio Larrañaga, é de total obediência e
fidelidade ao projeto divino diante do “novo de Deus”.
A condição para se deixar formar pela Liturgia encontra-se na iniciação; é
preciso ser iniciado na Liturgia. Para tanto, a ênfase no processo mistagógico,
como é possível ler nos números 37 e 41 da Desiderio desideravi. Isto serviu de
inspiração para eu dedicar um módulo dedicado à formação e à espiritualidade
litúrgica no meu curso de PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial. Em relação à
formação litúrgica, esta não acontece pela informação e explicações, mas pela
iniciação, condição para ser formado pela Liturgia. Isto acontece pela dinâmica
pedagógica da mistagogia.
Quando
a mistagogia não está presente, como aconteceu em vários momentos da história,
a Liturgia começa a perder uma de suas dimensões fundamentais: ser fonte para a
formação e o crescimento da vida cristã (SC 1 e SC 10). No passado, quando a
mistagogia começou ser negligenciada, as celebrações começaram a ser invadidas
por atrações artísticas, como é o caso de corais e concertos durante as Missas,
invadidas por promessas de milagres com Missas votivas para todo tipo de
necessidade, invadidas por disputas teológicas com sermões que fizeram
história... Ou seja, mudança de foco: em vez de ser formado pela Liturgia, com
a pedagogia mistagógica, o predomínio da estética, do milagre, de debates... Hoje,
o mesmo sequestro do arcano, do respeito pelo religioso em celebrações
litúrgicas, da mistagogia, continua acontecendo.
Sequestrado
em Missas que se servem da linguagem de entretenimentos, em casamentos com
linguagem teatralizada de ritos inspirados em novelas e não no Sacramento, em
confissões transformadas em terapia. É a troca da essência litúrgica, que é
encontro com Jesus Cristo, oferecendo a Salvação, por atrações do momento.
Celebra-se, nesses casos, para agradar, e se esquece que a Liturgia é atitude, na
qualidade de arcano, não se conforma com a linguagem do mundo; serve-se da
comunicação humana, de linguagens humanas, mas não da linguagem do mundo para
entreter. Formar-se pela Liturgia é assumir compromisso com o projeto divino. E
isso deverá ser celebrado de modo agradável e com a simplicidade própria da
Liturgia (cf. SC 28; 34).
Celebração e compromisso
com a vida cristã
Assim
como a Liturgia celebra e atualiza o Mistério, os celebrantes que participam da
Liturgia se comprometem com o que celebram assumindo atitudes da Salvação, do
Reino de Deus e do Evangelho e são iniciados no projeto divino pela pedagogia
mistagógica. Iniciados na linguagem litúrgica do Mistério. Eu trato deste
aspecto no meu curso de PLP – Pastoral Litúrgica Paroquial considerando que a
PLP existe para que, de modo organizado e planejado, possa alcançar o melhor em
todas as dimensões da Liturgia, principalmente favorecer nos celebrantes a
possibilidade de se deixarem formar pela Liturgia no processo mistagógico.
O
mistagogo Francisco, desse modo, introduz os celebrantes no Mistério da
Liturgia pelo aprofundamento em vista de acolher a Liturgia como momento no
qual participamos da Salvação. Isto pode ser melhor compreendido no número 61,
onde o Papa deixa claro que a Liturgia “sempre foi a fonte primária da
espiritualidade cristã” (DD 61). O modo de ser a “fonte primária da
espiritualidade cristã” é aquele mistagógico, proposto pela pedagogia
mistagógica desde os primeiros séculos da Igreja.
O
processo mistagógico não se concentra no conhecimento do que é cada momento ou
cada símbolo ou cada rito que compõem uma celebração Litúrgica, mas em iniciar
e introduzir o celebrante no Mistério celebrado para que possa ter um real
envolvimento existencial, envolvimento com a própria vida, com toda a
existência em vista da “conformação a Cristo” (DD 41). Sobre isso, neste
mesmo DD 41, Papa Francisco deixa claro que a Liturgia tem uma dimensão
pedagógica que, embora não seja a de principal importância, não pode ser
prescindida. E isso vale especialmente e necessariamente para os nossos tempos.
Esta
é uma proposta que procuro desenvolver e aprofundar, nos limites do curso de
PLP, com os cursistas. A Pastoral Litúrgica é uma dimensão da Liturgia e, no
contexto da PLP, a formação da vida cristã também se configura como uma
dimensão. Trata-se, bem entendido, de uma dimensão que merece ser considerada
com cuidado e atenção em nossos tempos. Como os mistagogos dos primeiros
séculos da Igreja, que na Liturgia e através da Liturgia, ensinavam a arte de
viver a fé cristã no caminho do discipulado, assim Francisco quer que a
Liturgia seja escola da vida cristã, como dizia São Paulo VI. Escola da vida
cristã que sempre se realiza — alcança um de seus objetivos — no discipulado e
na configuração a Cristo. Como dizia, este é um tema central meu curso de PLP, que
poderá ser acessado no site do SAL - Serviço de Animação Litúrgica no endereço www.liturgia.pro.br ou
entrando em contato conosco pelo e-mail: liturgia@liturgia.pro.br
Talvez,
você esteja se perguntando: como é algo que contém um certo grau de
profundidade, como os celebrantes podem compreender isso? Aqui, podemos um
motivo derivante da Carta Apostólica de Papa Francisco Desiderio Desideravi: a
importância da formação litúrgica na vida dos celebrantes. E para que a
formação seja efetiva, é importante que a PLP - Pastoral Litúrgica Paroquial -
tenha um programa formativo, não apenas intelectual, mas experiencial. Na
prática, não se trata de uma mudança de modo, mas de um modo novo e diferente
de participar e comungar a vida divina na Liturgia. E quando isto é
considerado, começa-se a compreender a Liturgia como fonte e cume de todas as
atividades da Igreja (SC 10).
Serginho
Valle
Março
de 2023